Ficção de Carol Rodrigues expõe traumas provocados pelo resquício escravocrata da relação patroa x funcionária do lar em primas criadas juntas
Por Graça Paes, RJ
É com a imagem de “A Redenção de Cam”, do artista espanhol Modesto Brocos, símbolo maior do mito da democracia racial brasileira, em chamas, que “Criadas”, primeiro longa-metragem de Carol Rodrigues, começa. Mas o efeito reverse motion (de reversão), com o fogo reconstituindo o quadro, indica que o reencontro das primas Sandra (Mawusi Tulani), negra retinta, e Mariana (Ana Flavia Cavalcanti), negra de pele clara não obedecerá às linearidades. Como engenheira, a primeira retorna à casa em que foi criada junto da prima, hoje uma chef de cozinha, à procura de fotos de sua mãe Ivone (Ivy Souza), então empregada na residência da prima Olívia (Sarito Rodrigues), durante a infância delas.
Esse é o fio condutor da trama que perpassa dores comungadas por pessoas negras no Brasil, em maior ou menor escala, graças ao colorismo e aos resquícios do sistema escravocrata tão presentes nas relações estabelecidas entre patroas x funcionárias do lar. E, no filme, com o agravante de que elas pertencem ao mesmo núcleo familiar.
Produção de Gato do Parque Cinematográfica, coprodução Telecine, Canal Brasil, NayMovie, Cinefilm, Volta Filmes e Netas de Esméria com distribuição da Vitrine Filmes, a obra foi selecionada e concorre na categoria Première Brasil: Competição Novos Rumos, do Festival do Rio, com exibições nos dias 3 de outubro, às 18h45: sessão exclusiva para convidados e estreia mundial, no Estação Gávea; no dia 4 de outubro, às 16h15, com sessão com venda de ingressos aberta ao público no Estação Rio 5, seguida de debate; e no dia 5 de outubro, às 18h, sessão com venda de ingressos aberta ao público no CineCarioca José Wilker 1.
Em meio ao acerto de contas com as feridas racistas de seu passado, as primas Sandra e Mariana começam a conviver, na casa onde cresceram, com forças sobrenaturais resistentes às suas novas posições sociais. As duas também são visitadas por suas versões ainda criança, interpretadas, respectivamente, por Vitória Marques Rodrigues e Alice de Jesus Feitosa. Com expressões infantis marcantes, ora de frustração, ora de descontentamento, elas delimitam os lugares sociais que cada uma podia ocupar naquele período.
O chamado de volta ao presente é feito no filme pela personagem Raquel, vivida pela angolana Rudimira Fula, então responsável pela limpeza da casa de Mariana. O retorno afrodiaspórico, por se tratar de uma imigrante, serve um outro ponto de vista territorial. Mulher sábia, ciente da dicotomia vivida naquele espaço pelas duas primas, faz de tudo para fazer seu trabalho e entrar e sair de lá sem sofrer qualquer tipo de prejuízo financeiro.
Diferentes camadas de luta encampadas por pessoas negras também atravessam as personagens em pautas como a invisibilidade no mercado de trabalho, a apropriação intelectual de quem não ocupa cargos de chefia, mesmo tendo competência e superformação para tal e recorrência de que duas pessoas negras ou mais raramente integram uma equipe, em ambientes corporativos montados no limite da cota racial. Subjetividades como a responsabilidade quase universal de honrar os antepassados, em geral, mães e avós, também são trazidas e é um sentimento compartilhado por Carol Rodrigues, que fez do filme uma declaração de amor a própria avó, Esméria, que partiu dessa dimensão 16 dias antes dela começar a rodar.
Quando, em cena, as duas protagonistas entoam juntas: “Mãe preta, quando canta no terreiro, embaixo daquele poleiro, só pro negrinho dormir / Dorme, filho, você não faz nada, tem pena da velha, que tá muito cansada/ O negrinho, com os lábios a sorrir, fecha os olhinhos e começa a dormir / Dorme nenê, mamãe tem o que fazer / lavar, engomar os paninhos de você”, elas estão cantando o que Carol ouvia na voz de Dona Esméria.
“A história fala das contradições internas da minha família. Minha avó veio para São Paulo com 14 anos para trabalhar como empregada do lar. Com 40 anos, se torna funcionária pública e começa a trazer primas para trabalhar em casa. Eu morava com a minha avó, mas a minha mãe me teve muito cedo, com 21 anos, e a gente morava no mesmo quintal. Apesar de afetivamente, o filme ser dedicado à minha avó, acho que a minha família entendeu que o filme é sobre a gente”, conta Carol Rodrigues, que dirige seu primeiro longa-metragem, depois de assinar curtas premiados como “A felicidade delas” (2019) e “A boneca e o Silêncio” (2015). O roteiro de “Criadas” também é dela e saiu vencedor nesta categoria no Festival Cabíria 2023 e com mais três prêmios do BrLab 2017.
Sinopse:
Sandra retorna à casa de sua prima Mariana em busca de uma foto de sua falecida mãe, que trabalhou ali como empregada residente para os pais de Mariana. Embora tenham sido criadas juntas, Sandra, negra de pele escura, e Mariana, negra de pele clara, viveram naquela casa de formas muito diferentes. Ao se reco no nectarem, memórias há muito enterradas tomam forma ao redor delas. Fantasmas da infância, da ancestralidade e de um amor que nunca foi embora completamente.
Ficha Técnica:
Direção e Roteiro - Carol Rodrigues
Elenco:
Sandra - Mawusi Tulani
Mariana - Ana Flavia Cavalcanti
Olívia - Sarito Rodrigues
Ivone - Ivy Souza
Raquel - Rudimira Fula
Sandra Criança - Vitória Marques Rodrigues
Mariana Criança - Alice de Jesus Feitosa
Bel - Alli Willow
Samuel - Tom Nunes
Tomás - Jerry Gilli
Produção - Julia Zakia e Guilherme César
Produção executiva - Juliana Lemes e Tiê Villares
Montagem - Keily Estrada e Carol Rodrigues
Direção de Fotografia - Julia Zakia
Direção de Fotografia Adicional - Luciana Baseggio
Concepção e Direção de Arte - Fernando Timba
Direção de Arte - Oliv Barros
Desenho e Edição de Som - Guile Martins
Som Direto - Andressa Clain
Operação de Microfone - Gustavo Ruggeri
Mixagem - Pedro Noizyman, A3pS e Rosana Stefanoni, A3pS
Design de Audiência - Talita Arruda e Marina Tarabay, Fistaile
Identidade Visual - Lucas de Britto
FESTIVAL DO RIO - Exibição acontece nos dias 3, 4 e 5 de outubro e filme concorre na categoria Première Brasil: Competição Novos Rumos
Carol Rodrigues, diretora e roteirista de “Criadas”
Além dos curtas-metragem que dirigiu, a cineasta assinou o roteiro das séries “3%”(T3 e T4), da Netflix, “Escola de Gênios” (T1 e T2), como roteirista e assistente de roteiro no Gloob/Globoplay e de roteirista de “Pico da Neblina” (T2), da 02 Filmes e HBO Brasil.
Em “Criadas”, minha mãe e minhas tias choraram ao assistir. Agradeceram por eu ter feito o filme. Naquele instante, lembrei por que fiz e por que sigo fazendo cinema. Foram as únicas pessoas fora da equipe que assistiram, e fazia sentido que fosse assim: é um filme em homenagem à nossa família. Uma busca das raízes, um gesto quase obsessivo de tentar me conectar e compreender a história da minha própria família para entender de onde eu venho.
Com tanto envolvimento pessoal foi difícil chegar ao roteiro final?
Para escrever essa história, precisei de ajuda e de muitas conversas. Desde quando havia apenas duas páginas de sinopse, já a mostrava para pessoas. Participei de laboratórios como o BrLab, oficinas de escrita e consultorias. Uma das presenças mais importantes nesse processo foi a roteirista Jaqueline Souza, amiga querida e profissional que admiro profundamente.
Foram 14 versões de argumento e seis versões de roteiro. A quarta foi uma versão só minha, que ninguém viu e ninguém verá. Era uma espécie de teste: coloquei no papel tudo o que havia sido provocado, até mesmo a ideia de que elas ficassem separadas. Foi uma versão que me parecia quase abjeta, difícil de encarar. Mas acredito que é importante contemplar o que nos enoja, o que nos dá medo, o que nos assusta. Só assim conseguimos ter mais certeza sobre o nosso caminho.
Com isso, cheguei à quinta versão com segurança. Já a sexta foi de ajustes, adequando o texto à voz das atrizes, com o elenco já formado, e também às particularidades da locação.
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